terça-feira, 31 de agosto de 2010

Gente, eu sou normal!

Dedico estas palavras às pessoas normais. E talvez seja uma forma de desculpar-me pelo constrangimento que as faça passar ao longo dos dias; ou, até, o medo que eu possa as incitar. Lamentavelmente, eu sou assim. Vivo de drogadição. Não há dia que eu não saia em disparada – como um crocodilo em ponto de fuga – em busca de amenidades. Calço um tênis surradinho, corpo e mente nus, e parto pro topo do morro. Ali onde me espreitam. Mas como boa moradora, o morro me assegura dos olhares perpendiculares. Basta encarar a montanha, posição namaskar, olhos fechados sentindo o abismo apaziguador. Levanto voo. Enquanto os carros passam às gargalhadas, agradeço o instante de alma liberta. Estou blindada.

E pouco importa o que pensam, ou o que dizem, ou com qual dedo me apontam. Aos que desviam seus passos pro outro lado pelo receio de roubar-lhes sua sensatez e sua moralidade, e aos que chegam mais perto pra ouvir o que canto, eu explico. Meu vício vem de cima. Dependo do Sol, da fuligem do vento, do torto da nuvem, do desmaio das estrelas. Não sou normal. Sou cativa do alto. Meus companheiros de cela são os bem-te-vis, o que rende muita música.

Por isso, não me condenem. A falta de pudor vem do céu – ser livre de nudezas – e eu descendo dele. Como ele, preciso sentir o vento passando em espirais pelos espaços do meu corpo. Dependo do alimento que não entra pela boca, mas pelas suturas mal feitas da pele. E são os assobios enrolados dos pássaros que me salvam, diariamente, desse mundo de normalidades e imitações prestigiadas.

De agora em diante, ao me encontrarem correndo, fiquem tranquilos. Vocês não são presas. Detesto gente normal. E nem adianta gritar meu nome, eu não vou ouvir. Vocês são surdos e escuto Chopin. E antes que esqueça; o balanceio dos meus braços seguido de namaskar, não é benzedura... É meu equilíbrio, é meu elo com o imanente – que desconheço –, é meu respiro cansado de um ar poluído e melancólico.

Bendita corrida do entardecer...

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Cigana

pelas aragens
um pouco às margens
dos olhos
ia

de um lado
pro outro
com a confiança de um haboob no Egito

cruzando céus
escuros prantos
plátanos
prados que não são seus
são de ninguém

pelas estradas
a promessa de um novo mundo

pro lado
de um outro
mas com a astúcia de um saltimbanco

dourados
rendados
mãos videntes

ia
os salteadores de caminhos

domingo, 29 de agosto de 2010

Esboço reticente

Alças voo sem que eu explique o que foi aquilo. Aquilo que não digo. Aquilo que nem sei por que sinto.
Sinto.

Lá fora a chuva cai sem esperança de que algo vingue. No imo peito vingo-me por não ter te olhado mais longamente, por não ter me agarrado como picão na tua aura cor de nuvem e nela voado um pouco mais.

Cada minuto que reclama é uma gota a menos de ar nos pulmões; e, assim, o céu vai murchando. Você mais longe. Longe mais perto da lembrança que não foge. E não finjo o sorriso que te dei e o vermelho que manchou meu rosto. Minha boca já salivava tua música, aquela que antecede a dança descompassada das gaitas, resultado de um roteiro improvisado e sem compromisso.

Lá fora a chuva já não cai, e minha angústia é só mais uma em mil... Por não ter nascido antes de Halley e porque no dia em que picavas legumes eu não te encontrei no corredor daquela árvore. Meu apartamento era o 203!

E agora que eu te encontro, você escapa. E o cosmos ri de mim pela segunda vez. E eu rio desse desabafo porque, afinal, eu sou uma nefelibata, uma tola. Minhas asas nunca ombrearão com as tuas. Rio com o sotaque de um trovão de luz. Câmera. Ação. Brincadeira de menina...

Sem mais cena, mas ainda com uma agonia na alma e uma vontade de repisar o não dito, de ter contado 1,2,3,4,5 e mais tempo minha mão pousada em ti, tenho naquele ensaio um ex-voto de que foi só um começo. Um longa-metragem só depende de ti.

sábado, 14 de agosto de 2010

BlogBlogs.Com.Br

Latitude -15° 46' 47''

Essa carta vai pelo vento mesmo. Selada a ar, a pingo, a espírito. Como era no princípio de todos os séculos e séculos, amém. Amém que o vento te encontre – como foi naquela noite esbaforida, numa esquina qualquer da vida –, te tope no ar, e grite: "Carta dela! Pega e assina aqui". Claro, carta registrada pra garantir. Garantir meu perfume percolando nas veias de tua mente. Garantir teus lábios em cada letra do meu nome. Nome que omito, mas reviro em todos os entardeceres no meu diário inacabado de desdéns. Desdéns que é nada demais pra uma engole-ventos, viu? Eu sei suportar as correntezas incontidas de um sopro grave: é só me agarrar a elas. Como o faz um coração preênsil. Aquele que se ancora nas margens, no topo, na raiz dos kardios adolescentes, sugando-lhes a seiva e o fulgor.
Foi assim que fizeste. Chegaste em remansos. Abusaste da oratória. E com pinta de poeta, cantou um hino de amor inabalável. Abalou o que não podia ter abalado. Meu marco zero. Meu princípio de ser. Ser livre. Ser vento. Fui engolida.

Mas por carta, mando lembretes para que não esqueças quem sou. Ou o que fui. Fui tua. Você dizia. E eu acreditei. Acreditei que pudesse ser além do que eu era. Acreditei que pudesse remasterizar aquele disco antigo, nossa trilha sonora, lembra? E agora que o telefone toca, eu penso: fui tua mesmo? Liga outra vez!

Vento amigo, mando dizer mais. Alerte de que minhas rêmiges não estão mais no mesmo ângulo. Elas nem lembram que eram penugens ralas e infantis: elas não balançam mais com águas covardes.
Águas passadas...
E mesmo que venhas por terra, mar ou nas asas de outro pássaro, ou se já me estás a esperar naquela esquina maldizente de cenário em lua afoiçada. Não cola. Não acredito. Liga outra vez!

Então eu juro. Juro por todos os santos e orixás que esta é a última carta, e serve pra isso. Pra dizer que não acabou, mas suporto. Minhas timoneiras é que me salvam deste voo-sem-bater-de-asas.

Agora senta e leia a carta.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Bosque cerrado

não é a idade que
ensina
é a acuidade do olho
a presteza da alma

o passarinho
não me foi quem contou
foi o torcido
dos galhos
de uma árvore
que
um dia
me embalou